15/12/2017

Memória e luta: Porantim edição 400

Da imprensa alternativa à internet, o jornal completa mais um ciclo rumo aos 40 anos

Porantim 400

Ascom/Cimi

O Porantim é a publicação indigenista mais antiga e em circulação no Brasil. No próximo ano, o jornal completa 40 anos. Nasceu seis anos depois da fundação do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), organização responsável por fazer com que a publicação chegue às aldeias e aos espaços onde a causa indígena precisa ecoar. Neste mês de novembro, o Porantim se encontra à edição 400 – um feito memorável, importante de ser celebrado após quase quatro décadas de enfrentamentos sistemáticos em defesa da vida e da terra dos povos indígenas.

Veja a edição 400 em pdf

Fundado por um antropólogo, Renato Athias, um missionário indigenista do Cimi Regional Norte I, Paulo Suess, e um jornalista, José Ribamar Bessa Freire, seu primeiro editor, Porantim é um nome emprestado do povo Sateré-Mawé e pode ter ao menos três significados: remo, memória e arma. Até 1982, o jornal teve como sede Manaus (AM). Com a ida do Secretariado Nacional para Brasília, o Porantim ganhou nova redação na Capital Federal comandada pelo jornalista Antônio Carlos Moura, já falecido. Nessa fase o jornal passa a ter abrangência nacional; antes debruçava-se de maneira mais integral às questões indígenas da Amazônia.

Até o término da ditadura militar, o jornal foi acossado pelo regime. Não havia um censor para verificar os textos antes de publicados, como acontecia com os jornalões na época, mas o Porantim cerrava fileiras ao lado de publicações como Movimento, Pasquim, Tribuna Operária, Opinião, Versus. Jornais que compunham a chamada ‘imprensa alternativa’ – combatida de forma dura e assassina pelo governo militar. Moura chegou a ser preso, na Rodoviária de Brasília, quando tentava embarcar remessas de Porantins para os regionais do Cimi espalhados pelo país. O jornal, portanto, chega na edição 400 com essa história de luta e entrega à causa indígena.

Convidamos alguns ex-editores e ex-editoras a compartilhar uma pequena, mas substancial memória destas 400 edições. Jornalistas que dedicaram anos de suas vidas profissionais ao Porantim e à causa indígena, sem nunca terem deixado de tratar da questão em suas produções posteriores – seja na academia, na vida pública ou no próprio jornalismo. No rumo dos festejos de seus 40 anos, o Porantim celebra com um novo ciclo que se abre perante os desafios da informação rápida, veiculada por multimeios e pulverizada da internet, mas ainda com demandas por aprofundamento, credibilidade e acompanhamento sistemático e in loco à causa indígena. 

Jornal sofisticado, profissional

Antônio Carlos Queiroz, o ACQ, repórter do Porantim entre abril de 1982 e março de 1983, e editor de janeiro de 1989 e fevereiro de 1995

Em agosto de 1982, reuniu-se pela primeira vez em Brasília o Conselho Editorial do Porantim. Pouco antes da reunião, Dom Tomás Balduíno, um dos conselheiros, comentou comigo, e com o editor Antônio Carlos Moura, que o Porantim era “o único jornal da Igreja sem cheiro de sacristia”. Talvez tenha sido esse o maior elogio já feito ao Porantim.    

Naquele encontro, o Conselho Editorial chegou à conclusão de que o jornal “não tem caráter exclusivamente pastoral – ou confessional. É, antes, um jornal de denúncia, de análise, de informação, que, nessa linha, presta um serviço às lideranças indígenas, aos missionários, aos antropólogos e demais profissionais ligados à causa indígena e à opinião pública em geral”. Sua principal característica, mantida nessas quatro décadas, com os  altos e baixos de praxe, foi a prática do jornalismo no sentido mais nobre, sofisticado, profissional. É a minha opinião.

Comecei a trabalhar no Porantim em abril de 1982, a convite de Antônio Carlos Moura, de quem tinha sido colega no Movimento, um semanário de combate à ditadura, fechado em novembro do ano anterior. Minha primeira tarefa foi acompanhar o secretário nacional do Cimi, Paulo Suess, na secretaria gráfica da edição 38, que trazia “um retrato da nossa população indígena” – dados estatísticos sobre os povos sobreviventes e as terras que lhes restavam. Na época, a Funai tentava extinguir as nações indígenas pela estatística, rebaixando as suas populações. O Cimi fazia exatamente o contrário, redescobrindo e contando os restinhos dos povos que insistiam em renascer.  

Com poucos recursos, fizemos grandes escarcéus naquele ano. Denunciamos os critérios de sangue (fator Diego), inventados pelo coronel Zanoni Hausen, da Funai, para certificar quem seria índio autêntico; botamos a boca no trombone contra o médico que ligou ilegalmente as trompas de Everon, uma Kayabi que tinha parido trigêmeos no Hospital de Base; protestamos contra a  tentativa da Funai de fechar o Museu do Índio etc.

Com tanta desgraça, sobrou espaço para o bom humor. Publicamos então uma novela em quadrinhos sobre a aliança das traças (do museu) com o morcego-vampiro (os fatores sanguíneos).

O Moura morava em Goiânia. No final do mês, vinha para Brasília para editar o jornal. O esquema durou até março de 1983, quando tive de sair do Cimi para assumir outro compromisso profissional. Em janeiro de 1989, porém, voltei para o Porantim, dessa vez para ficar seis anos como seu editor. Tenho mil e uma histórias a mais.

Antes de acabar o papel, devo dizer que o Porantim ganhou, no dia 20 de outubro de 1989, o prêmio Pierre Chevalier, “por seu trabalho abnegado em favor dos indígenas”. O prêmio foi outorgado pela União Católica Internacional de Imprensa (UCIP). Tivemos até que produzir uma edição do jornal em alemão, sob os auspícios de uma entidade da juventude católica da Áustria. O muro de Berlim seria derrubado dali a duas semanas e meia. Nós insistimos no levante dos povos indígenas.

“Porantim é para sempre”

Railda Herrero foi repórter e editora do Porantim entre 1983 e 1986, sendo colaboradora do jornal até os dias de hoje

Quem me apresentou o Porantim foi Severino do Ramo, jovem poeta que migrou da Paraíba com a família Potiguara para o Jardim Helena, na carente zona leste, onde o poluído rio Tietê vazava os dejetos paulistanos na temporada das chuvas. Amigo querido na militância nas causas populares da periferia, o poeta divulgava e inspirava a leitura do jornal criado em Manaus no final da tenebrosa década de setenta.

Eram tempos bicudos, ainda da ditadura militar, mas as vozes começavam a se levantar com o abrandamento da censura. O Porantim circulava ao lado de jornais como Movimento, Opinião e Versus, nas bancas de jornais e livros de resistência, e a causa indígena ganhava corações dos que empunhavam bandeiras pelas liberdades democráticas e por um mundo mais justo. Fui fisgada pela causa ao ler os artigos de Ribamar Bessa, os editoriais e poesias de Paulo Suess, e dos Pedros Tierra e Casaldáliga e ao conhecer a coragem do Cimi em enfrentar os militares, denunciando os abusos contra os povos indígenas nos grotões do Brasil naqueles tempos difíceis.

Em abril de 1983, indicada pelo poeta potiguara a Benedito Prezia, fui entrevistada por Paulo Suess no saguão do aeroporto de Congonhas e saí de lá abraçada a um sonho, uma causa inspiradora. No dia seguinte, larguei dois empregos e as correrias da louca São Paulo dos tempos animados de abertura democrática e fui para a sisuda Brasília, militarizada e pouco populosa, que ainda comportava grande parte de seus moradores no avião desenhado por Oscar Niemeyer. Começava uma das mais importantes viagens da minha vida.

Uma viagem a um Brasil tão velado, que eu também precisava descobrir para ajudar a desvelar. Uma viagem a diferentes culturas e realidades que me fez repensar a história pessoal e oficial. Eram tantas histórias, tantas culturas milenares, mas sobravam denúncias de abusos a divulgar, que tomavam quase todo nosso tempo e espaço no jornal.

O jornalista Antônio Carlos Moura, militante de peso da arquidiocese de Goiânia, editor do Porantim, passou o bastão, apesar do amor ao jornal. Para forçar a abertura política era necessário atuar em diversos campos e ele partiu para o político partidário. O jornalista Antônio José Reis veio do Maranhão reforçar a equipe, magra demais para tantas tarefas naquele período efervescente.

Jornal, assessoria de imprensa/relações com as bases e com instituições nacionais e internacionais, edição de materiais e livros, coberturas de eventos e acompanhamento das representações indígenas que se multiplicavam nas trilhas burocráticas brasilienses. As tarefas eram muitas com o Cimi tentando se estruturar para enfrentar os desafios da nova conjuntura, ampliando pequenas conquistas do final da ditadura militar.

O estresse da carga pesada era compensado com a camaradagem, com a alegria dos ares da mudança, com o apoio das bases, com as amizades, laços que se firmaram para toda a vida. A energia com que o país se levantou das botas dos coturnos era contagiante, pautava atitudes, sonhos. Esse espírito encorpou o movimento pelas “Diretas Já” e a Brasília zumbi esverdeada despertou com tantos cutucões dos movimentos sociais, indígenas e indigenistas. A cidade estava firme na batalha pela aprovação da emenda pelas Diretas Já, em 1984. E seguiu efervescente no processo que garantiu a Constituição cidadã, em 1988.  

Sem meios

Fartura de trabalho, “faltura” de meios. Assim era o setor de comunicação do Cimi nos anos 1980. Sem computador e celular, sem equipe completa, garimpar dados e acompanhar os acontecimentos nas aldeias não era simples, apesar de todo o esforço dos regionais do Cimi e das organizações indigenistas e indígenas nas áreas, para nos enviarem notícias. O fechamento de cada jornal era quase um parto, da caça às notícias a escrever, reescrever, mudar, reescrever tantas vezes quanto necessário na velha máquina até tudo ir para o paste-up (colagem dos textos impressos). Revisar, emendar, re-revisar, virando noites nas gráficas, até o fotolito ser gravado numa chapa para a impressão, e, no dia seguinte, ajudar no mutirão para dobrar e despachar o jornal aos mais variados e distantes rincões.

Solange Rodrigues e Cilene Pereira cuidavam com carinho da administração e secretaria do jornal e das tantas tarefas para apoiar os trabalhos do Cimi. E não faltava o apoio de Leda Bosi Magalhães, Juarez Martins, Rosinha Brianezi da Silva, Lúcia Brand, Raimundo Cruz, Jósemo… e Aida Marise Cruz, que tornava a carga leve, espalhando alegria. O coleguismo e a dedicação dos colegas do Cimi eram imensos. Com esse espírito chegou o jornalista Eduardo Leão, que mergulhou de cabeça na questão indígena, assumindo integralmente nossa tarefa com Valéria Costa.

Colaboradores especiais

Eram muitos os colaboradores diretos ou indiretos do Porantim no tempo da abertura política no país. Antropólogos, juristas, missionários, indigenistas, indígenas, professores, bispos, estudiosos, linguistas, pesquisadores, fotógrafos, e entidades de apoio à causa indígena. Somavam-se aos colaboradores fixos, como um de seus fundadores, o teólogo Paulo Suess, ex-secretário do Cimi, cujos editoriais e textos eram peças poéticas, ao versar sobre a luta, a vida e a esperança dos povos indígenas. O secretário-executivo Antônio Brand era um companheiro imbatível na dedicação à causa indígena e no apoio à comunicação.

O secretário mochileiro, Egon Heck, era nosso pauteiro fundamental, trazendo das aldeias mais distantes e das bases as boas e más notícias, sempre com as mais sensíveis imagens. O advogado Paulo Machado Guimarães se encarregava dos textos jurídicos com a mesma paixão desmedida com que defendia a causa nos tribunais, enquanto organizava a assessoria jurídica do Cimi. Dom Erwin Krautler, em primeiro mandato à frente da presidência da instituição, era um grande companheiro e conselheiro, defensor incondicional dos direitos dos pequenos.

Benedito Prezia, secretário-adjunto sempre preocupado com a comunicação popular, passou a colaborar num projeto visando conquistar leitores nas escolas. A antropóloga Maria Lúcia de Macedo Cardoso elaborou os primeiros encartes. O projeto desembocou em suplementos culturais e artigos de Prezia, que se somaram e se transformaram em dezenas de livros publicados nas décadas seguintes.

Contamos com a colaboração especial de Aryon Dall´Igna Rodrigues, da Universidade de Brasília. O professor produziu uma série de artigos sobre as línguas indígenas para o jornal, que editamos em um livro, publicado pela editora Loyola em 1986. Com o título Línguas brasileiras: para o conhecimento das línguas indígenas foi escolhido pela Câmara Brasileira do Livro como um dos cem livros do século, ao lado de clássicos do pensamento brasileiro como Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, e Os Sertões, de Euclides da Cunha.

Para organizar o atropelado acervo do Porantim/Cimi, que se ampliava a cada dia, contamos com as preciosas dicas da fotógrafa Cláudia Andujar, em suas passagens por Brasília. A autora das imagens fantásticas dos Yanomami, que ganharam o mundo, era nossa fonte de informações constante sobre a luta desse povo pela terra.

O Porantim canalizava esforços e pensamentos de muitos setores ligados à questão indígena. E nosso ideal era torná-lo cada vez mais plural e ampliar o público, trazendo o mundo desconhecido das aldeias ao Brasil anestesiado pelos resquícios do ideal militar de um país de uma única voz, única cultura, única língua.

Tive o privilégio de registrar vozes indígenas nas mais diversas regiões do país, ouvindo histórias, acompanhando lutas iniciais, que desembocaram em conquistas de terras, garantia de vidas. Entre os registros me impressionou o levante das comunidades da Raposa Serra do Sol, em Roraima, vitoriosas décadas depois. Acompanhei a garra dos Pataxó-Hã-hã-hãe na retomada de suas terras no sul da Bahia e tantas outras lutas. Essas vozes me marcaram e aprendi a não desanimar nunca ao conhecer de perto a resistência pacífica dos Guarani em Mato Grosso do Sul. Ao entrevistar um velho sábio Guarani Kaiowá, uma frase levei pra vida: “A gente não pode ficar bravo, porque o mundo pega fogo”. De outro sábio conheci o jeito guarani de cultivar, respeitando a natureza, lição que somente agora o mundo não indígena está prestando atenção. Registrei experiências de vida fantásticas, exemplares, entre elas a do missionário Vicente Cañas, morto por defender a terra dos Enawenê Nawê que ajudara a contatar em Mato Grosso.

Foram anos de intenso aprendizado e trabalho, até o esgotamento e a partida para novas viagens, levando na bagagem histórias para a vida inteira. Continuei contribuindo sempre que possível com a causa indígena, abrindo espaços para o tema nos lugares por onde passei. Na Rádio Internacional da Holanda fiz uma série de programas intitulada Vozes Indígenas no Brasil, em parceria com o companheiro Mario de Freitas, e esses registros resultaram no Prêmio Vladimir Herzog de Jornalismo e Direitos Humanos de 2005.

Duas histórias sobre milhares de histórias guardadas nos Porantins

Priscila Delgado de Carvalho, editora do Porantim em 2002 e repórter entre 2004 e 2008, sendo colaboradora e editora do jornal em ocasiões esporádicas

Em 2000, estava por acontecer um despejo na terra Nhanderu Marangatu. A violência e as taxas de suicídio no Mato Grosso do Sul não paravam de aumentar, e a desnutrição das crianças Guarani-Kaiowá se tornava um escândalo nacional. A então equipe do Cimi no Mato Grosso do Sul saiu em visitas pelas aldeias para obter mais informações. A equipe de comunicação, que trabalhava em Brasília, foi junto – precisávamos saber do que estava acontecendo no MS. Tive a imensa sorte de estar nessa viagem – da qual me lembro frequentemente. Dali saiu um encarte para o Porantim, com as notícias que mandávamos a cada madrugada – a hora fresca, em que escrevíamos, antes de entrar nas estradas para chegar a aldeias com pouca, quase nenhuma terra tradicional garantida.

Essa história diz dos problemas que vivemos e das histórias que contamos a partir deles, mas também da preocupação do Cimi com a comunicação – e não é pequeno o mérito de colocar a comunicação no planejamento das atividades como se fazia ali. Um acerto dos secretários (e secretaria) da época, mas era também uma tradição de valorizar o trabalho de contar sobre a vida dos povos indígenas.

No trabalho de produzir o jornal, chegar às medidas corretas nos tons dos textos sempre foi desafiador. Queríamos a vida, não queríamos imagens idealizadas. Muito mais vezes, porém, lendo a cobertura da imprensa comercial, reclamei do fato de que notícias de morte e violência encontravam seu caminho muito mais rápido do que aquelas que contavam sobre a força da vida dos indígenas. O Porantim evitou esse erro, tendo se equilibrado entre a resistência, a luta, a força e a denúncia nessas 400 edições.

Bem antes de as notícias circularem pela internet com a velocidade que têm hoje, o Porantim já era um poderoso meio de circulação de informações entre missionários e, para minha própria surpresa, também entre indígenas. Tive certeza disso quando numa aldeia me deparei com uma jovem Tapirapé efetivamente lendo o jornal – outra das imagens que ainda me acompanham. Nem sempre, como editora, acertei o tom ou a quantidade dos textos – na ânsia de contar o que víamos, saíram muito mais letras e detalhes jurídicos do que ilustrações, fotos e legendas.

Em parte, isso acontecia porque o Porantim cumpre muitas funções. Uma imediata, narrando lutas por direitos. A outra, de registro: nessas páginas, estão algumas das histórias que estamos guardando para outros tempos, futuros.

PS – Qualquer história sobre o Porantim precisa contar também das pessoas que, a cada mês, fizeram o jornal existir, entre elas o diagramador, Licurgo Botelho, a revisora, Leda Bosi, e o Dadir de Jesus Costa, da administração do jornal. Que equipe!

Transformações, euforia, desconfiança, apocalipse

Cristiano Navarro, editor do Porantim entre 2002 e 2006; missionário do Cimi no Regional Mato Grosso do Sul de 2006 a 2008

Dois importantes desafios à função de editor da mais longeva e importante publicação sobre questão indígena se apresentaram logo que cheguei, em 2002. O primeiro, colocado pelo secretariado do Cimi, seria encontrar uma nova linguagem capaz de ampliar o público leitor das informações colhidas pelos missionários e produzida por seu setor de comunicação. Foi aí que a ideia de mudar a linha editorial da comunicação, fazendo com que o Porantim refletisse esteticamente a ideologia e alinhamento político da entidade.

Com o intuito de deixá-lo o menos institucional possível, as reportagens do Porantim não tinham mais a necessidade de ter uma aspa conclusiva de um diretor do Cimi. A posição da organização passou a se encontrar diluída entre dados, informações, opiniões de lideranças indígenas, missionários, antropólogos e indigenistas. Nesse sentido, o excessivo número de fotos publicadas sob o argumento de “o missionário deve aparecer” teve um fim. A partir deste conceito, conseguimos mudar não só a comunicação com o público via Porantim e site, mas também a forma de nos relacionarmos com a imprensa na produção de releases, materiais gráficos para mídia e cursos de indigenismo para jornalistas.

O segundo, e maior, desafio apresentou-se pelo momento histórico e conjuntural em que se encontrava o país e em especial os movimentos sociais. A euforia pela possibilidade da chegada do Partido dos Trabalhadores à Presidência da República contrastava com o total descaso da Campanha Lula Presidente com relação ao movimento indígena. Já no fim do segundo turno, depois de todas as outras cartas compromisso, foi publicado um documento bastante genérico sobre as diretrizes da política indigenista.

Nos quatro anos que se seguiram, Lula não recebeu nenhuma vez sequer o movimento indígena. Por outro lado, o projeto neodesenvolvimentista, inspirado na panaceia dos governos militares, se via representado pela transposição do Rio São Francisco, construção de hidrelétricas e apoio irrestrito ao agronegócio. Não obstante, de Norte a Sul, o Porantim pôde registrar em suas páginas o movimento mais combativo a este projeto de morte.

O jornal tratou do reconhecimento pelo Estado dos antes chamados povos ressurgidos, sobretudo no Nordeste, a conquista da homologação da Raposa Serra do Sol, o orgulho Xukuru de levar a luta de seu cacique Xikão adiante, a expulsão da gigante Aracruz celulose das terras Tupiniquim, a reocupação palmo a palmo da terra tradicional pelo Povo Pataxó, escrita a sangue. Rebeliões, nem todas vitoriosas, mas que, mesmo em meio ao apocalipse, seguiram fazendo da ação do Cimi um ponto inflexível ao colonialismo genocida. Ou como gosta de citar Dom Pedro Casaldáliga sobre o soldado anônimo que lutava contra a ditadura franquista, na Guerra Civil Espanhola: “Soldados derrotados de uma causa invencível”.

Esta reportagem integra o Jornal Porantim – edição 400

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