01/03/2018

Assembleia Guarani Yvyrupa: força aglutinadora na luta pela terra e na defesa de seu Nhandereko

Encontro marcado pela presença dos Karai, Kunhã Karai – líderes religiosos – os Xeramoῖ e Xejaryi Kuery – anciãos e anciãs – e por caciques dos tekoa – lugar onde se é – do ES, RJ, SP, PR, SC e RS

Os Guarani lutam para manter suas formas tradicionais de vida, mesmo com a intensa fragmentação de seu território

Os Guarani lutam para manter suas formas tradicionais de vida, mesmo com a intensa fragmentação de seu território. Foto: Roberto Liebgott/Cimi

Por Roberto Antônio Liebgott, coordenador do Cimi Regional Sul

No Tekoa Pindo Mirim, Terra Indígena Itapuã, município de Viamão/RS, ocorreu entre os dias 19 e 23 de fevereiro a Assembleia Regional da Comissão Guarani Yvyrupa (CGY). O evento foi marcado pela forte presença dos Karai, Kunhã Karai – líderes religiosos – os Xeramoῖ e Xejaryi Kuery – anciãos e anciãs – e por caciques dos tekoa – lugar onde se é – do Espírito Santo, Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Houve também uma expressiva participação de homens, mulheres, crianças e Xondaro Kuery – guardiões Guarani – das comunidades vizinhas, durante os quatro dias de encontro.

As assembleias da Comissão Guarani Yvyrupa ocorrem anualmente e se tornam um espaço de reflexão e discussão sobre a realidade Guarani do Brasil. A expressão Yvyrupa é utilizada para designar a estrutura que sustenta o mundo terrestre. E seu significado evoca o modo de ocupação do território pelos Guarani, sempre de maneira livre, respeitosa e harmônica. As grandes reuniões do povo Guarani cumprem também a função de articular a luta pela terra, tendo em vista que grande parte do território deste povo foi devastado ao longo de todo o processo de colonização, e até os dias de hoje.

Na atualidade, a maior demanda do povo Guarani é a demarcação das terras. A terra – yvy – é condição essencial para a manutenção das vidas e da cultura tradicional. As lideranças políticas e espirituais manifestaram, ao longo de toda a assembleia, preocupação com a continuidade das lutas e resistências ensinadas pelos mais velhos. As preocupações expressadas concentram-se no reconhecimento e garantia dos direitos territoriais, na melhoria das condições de vida, no fortalecimento da cultura e no respeito às formas tradicionais de conduzir as relações internas. Se debruçam também sobre o cuidado com as crianças, os jovens, os casais, os mais velhos e, de modo enfático, abordaram a necessidade de se resguardar o modo de ser guarani – o Nhandereko –, ameaçado pelo avanço desenfreado das frentes de expansão, da colonização e das novas tecnologias dos jurua (não indígenas), especialmente os celulares que interferem no cotidiano da vida, no convívio, nas reuniões.

As grandes reuniões do povo Guarani cumprem também a função de articular a luta pela terra, tendo em vista que grande parte do território deste povo foi devastado

Na atualidade, os Guarani lutam para manter suas formas tradicionais de vida, mesmo com a intensa fragmentação de seu território e, em muitos casos, com a condição de habitantes de acampamentos, em barrancos e beiras de estradas.  Mesmo na adversidade, este povo restabelece sua identidade e suas vinculações com o território, frente às políticas estabelecidas pelo Estado, que os tratam como estrangeiros, e recusa-se em demarcar as áreas condizentes com suas necessidades e expectativas. A questão central que marca os conflitos atuais vividos pelos Guarani é a falta de espaços para viverem suas culturas, suas formas de ocupação, acesso e usufruto das terras. Tal questão coloca para o povo Guarani a necessidade de atualização de seus discursos religiosos, no sentido de incorporarem neles também a dimensão da luta política.

Os encontros Guarani são sempre conduzidos pelos Xeramoῖ e Xejaryi Kuery. Foto: Roberto Liebgott/Cimi

Nas áreas demarcadas, e por eles preservadas, a terra constitui-se em espaço físico e simbólico fundamental, pois nela eles cultivam uma grande variedade de plantas medicinais, além da agricultura e criação de pequenos animais. Suas aldeias sempre foram construídas em lugares cobertos de mata e com muitas nascentes de água. O tekoha é o lugar físico – terra, mato, campo, águas, animais, plantas, remédios etc. – onde se realiza o Nhandereko o “modo de ser”, o jeito de viver Guarani. Esse lugar além de possuir água e mata, recursos de grande importância na vida Guarani, deve assegurar as relações com o mundo espiritual. Para os Guarani, é indispensável que nas áreas demarcadas contenha espaços para plantio da roça familiar ou coletiva, a construção de suas habitações e lugares para atividades religiosas. Muitas das terras reservadas pelo Estado para este povo são pequenas, insuficientes, e não atendem aos critérios culturais, étnicos, religiosos e de subsistência.

Os Xeramoῖ e Xejaryi conduziram as discussões da assembleia a partir de falas profundamente espiritualizadas e encarnadas nas suas realidades de um viver tensionado pela falta de terra, pela degradação ambiental, pela restrição de acesso à água potável, pela escassez de alimentos e por uma saúde sempre em risco. A dimensão da religiosidade e a cosmovisão de mundo dos Guarani são as bases dos relacionamentos entre as pessoas, entre elas com os animais, plantas e com todos os demais seres. Nhanderu, sempre presente, torna a vida mais esperançosa, segura e confiante no caminho que se percorre rumo à Terra Sem Mal.

A partir das narrativas dos mais velhos, se consegue perceber que a pessoa Guarani vai sendo constituída pela palavra, pois constitui-se numa porção divina que é enviada em forma de palavra-alma e se torna pessoa à medida que vai sendo pronunciada

Outro aspecto importante, e que ficou muito evidente no decorrer das falas das lieranças e pela concentração demonstrada por aqueles que as ouviam, refere-se à força da palavra. Para eles a palavra é elemento de constituição da pessoa e de elaboração contínua de seu modo de viver. Os Guarani são “o povo da palavra”, e a prática de escutar e de falar configura sua organização social, política, religiosa. A partir das narrativas dos mais velhos, se consegue perceber que a pessoa Guarani vai sendo constituída pela palavra, pois constitui-se numa porção divina que é enviada em forma de palavra-alma e se torna pessoa à medida que vai sendo pronunciada, lida, inventada; através de palavras que são proferidas pelos pais, pelos líderes religiosos, pela comunidade, em diferentes momentos do cotidiano e dos rituais. Observa-se, assim, que a palavra é um componente central no dia a dia dos Guarani e ela se converte em conselhos e ensinamentos – dos pais para os filhos, dos anciãos para os jovens, e assim por diante.

Os Guarani presentes na Assembleia da Yvyrupa salientaram que é chegada a hora de dar um fim ao sofrimento de vidas condicionada à beira das estradas, em acampamentos precários em terras degradadas e inadequadas; dar um fim à fome gerada pela contaminação pelo agrotóxico dos lugares onde grande parte das famílias vivem, onde suas crianças passam fome e não têm acesso à saúde e à educação; dar fim ao preconceito, à intolerância e ao desrespeito étnico e cultural; dar um fim ao processo de destruição das terras e o envenenamento das águas.

Nhanderu, sempre presente, torna a vida mais esperançosa, segura e confiante no caminho que se percorre rumo à Terra Sem Mal

Ao se dirigirem às autoridades, que se fizeram presentes na assembleia, as lideranças cobraram insistentemente as demarcações das terras, exigindo a retomada dos procedimentos paralisados e que sejam retirados os ocupantes não indígenas – os juruá – de cima de suas áreas; se manifestaram pela revogação do Parecer 001 da Advocacia-Geral da União (AGU), uma vez que este impõe as condicionantes do caso Raposa Serra do Sol e o Marco Temporal à CF/1988 como regras norteadoras nas demarcações de terras; se posicionaram contra a PEC 215/2000 e o PL 31/2016, cobraram a regularização fundiária das terras adquiridas pelo estado do Rio Grande do Sul, e destinadas aos Guarani; também exigiram maior empenho dos órgãos de assistência no sentido de assegurar que as políticas públicas sejam gestadas de uma maneira melhor e que as comunidades tenham acesso a elas – saúde, educação, atividades produtivas, preservação e proteção do meio ambiente.

Os Guarani se manifestaram pela revogação do Parecer 001 da Advocacia-Geral da União (AGU), uma vez que este impõe as condicionantes do caso Raposa Serra do Sol e o Marco Temporal

Juventude Guarani se fez presente na busca pela Terra Sem Mal. Foto: Roberto Liebgott/Cimi

Ao final, as lideranças agradeceram a acolhida feita pelas famílias do Tekoa Pindo Mirim, saudaram as entidades de apoio que se fizeram presentes – Centro de Trabalho Indigenista (CTI) e o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), e então prestaram um agradecimento especial às lideranças que compõem a Comissão Guarani Yvyrupa.

Com as bênçãos e conselhos dos Xeramoῖ e Xejaryi, a Assembleia foi encerrada.

Fonte: Cimi Regional Sul
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