16/04/2018

Impunidade anunciada: o índio e a morte póstuma decretada em sentença

Réu confesso acusado de matar a tiro o Guarani Kaiowá Denilson Quevedo Barbosa não responde mais pelo crime de homicídio doloso. Juíza entendeu que o autor não teve objetivo de matá-lo, apesar de ter confessado o disparo.

Por Assessoria Jurídica Cimi

Era domingo, 17 de fevereiro de 2013. Uma cena deprimente, de cair em melancolia. O corpo do indígena Denílson Barbosa era encontrado, jogado em uma estrada vicinal que separa a aldeia onde morava o adolescente de algumas fazendas. Denílson Barbosa, mais “um gentio destas terras livres”.

Dois dias depois, 19 de fevereiro, o proprietário da fazenda que incide sobre território reivindicado pelos indígenas como tekoha Pindo Roky se apresentou na delegacia de Caarapó (MS) e confessou a participação no crime que ceifou a vida do indígena. Orlandino Carneiro Gonçalves, 61, confessou ter atirado no adolescente Guarani Kaiowá de 15 anos, morto com um tiro na cabeça. Não foi bala perdida. O disparo foi certeiro.

Cinco anos se passaram. Ao abrir os jornais eletrônicos neste 16 de abril de 2018, estarrecida, qualquer pessoa pode passar à leitura da seguinte passagem – sobre a passagem de uma sentença judicial, que se inunda num cenário de violência cotidiana, de impunidade ululante e da inadequação da vida das gentes da terra num cenário de defloramento crescente no campo do Brasil:

O fazendeiro Orlandino Carneiro Gonçalves, acusado de matar a tiro o Guarani Kaiowá Denilson Quevedo Barbosa, de 15 anos, na zona rural de Caarapó, não responde mais pelo crime de homicídio doloso. Com base em análise pericial, a juíza Cristiane Aparecida Biberg de Oliveira entendeu que o autor não teve objetivo de matá-lo, apesar de ter confessado o disparo[1]. g.n.

É possível, ainda, na mesma data, neste triste 16, encontrar a seguinte informação no sítio da Comissão Pastoral da Terra – CPT:

Mesmo com o atraso em sua publicação, a CPT torna públicos hoje os dados de assassinatos em conflitos no campo ocorridos no ano de 2017. Novamente esse tipo de violência bateu recorde, e atingiu o maior número desde 2003, com 70 assassinatos. Um aumento de 15% em relação ao número de 2016. Dentre essas mortes, destacamos 4 massacres ocorridos nos estados da Bahia, Mato Grosso, Pará e Rondônia. Destacamos, ainda, a suspeita de ter ocorrido mais um massacre, de indígenas isolados, conhecidos como “índios flecheiros”, do Vale do Javari, no Amazonas, entre julho e agosto de 2017[2] (grifos originais).

Significa dizer que a impunidade gera violência, faz crescer o número de vítimas no campo brasileiro e faz habitar no seio da larga produtividade rural, a desfaçatez e a agudização do escárnio contra os povos tradicionais e pequenos agricultores. A vida passa a não valer muita coisa, quando se é índio….

16 de abril de 2018

Diz a sentença sobre o crime que matou Denílson Barbosa Guarani Kaiowá friamente:

[o réu] …admitiu que efetuou os disparos de arma de fogo que atingiu a vítima (…) [e diz a testemunha que] estava no local do crime juntamente com a vítima quando ambos pescavam no rio, quando então os cachorros latiram e o réu saiu efetuando os disparos.

O laudo de exame asseverou, segundo o juízo sentenciante, que o ferimento que ceifou a vida de um jovem indígena Guarani Kaiowá, decorreu de disparo de arma de fogo na região temporal esquerda da cabeça, imediatamente posterior à orelha. Ou seja, não foi um tiro frontal, mas sim pelas costas, o que demonstra a total impossibilidade de defesa. Depois, a alegação é que não tinha intenção de matar e que os tiros foram dados aleatoriamente. Contudo, a pontaria aleatória parece ser muito eficaz, pois atingiu a cabeça do indígena. Conclui o juízo não discordante: “Tratam-se, pois, de circunstâncias que comprovam a ausência de dolo do réu na prática do delito”.

Na ocasião da morte, no dia cinco de março de 2013 o Conselho Indigenista Missionário, em nota que sustenta a versão apresentada pelos indígenas, questinou:

“A comunidade, portanto, refuta a versão de que o fazendeiro, naquela noite de 16 de fevereiro, teria atirado da varanda de sua casa na direção do criadouro de peixes porque ouviu barulho e os latidos dos cães. A distância da varanda da casa até o local onde Denilson foi morto é de pelo menos 400 metros. A pergunta que deve ser respondida é como um senhor de 61 anos de idade, durante a noite, portanto no escuro, e a mais de 400 metros acertou um tiro na cabeça do adolescente?”

Primeiramente, compete analisar o fato do réu sair atirando em direção aos indígenas que estavam a pescar no rio: qual o risco de atirar aleatoriamente e às escuras? Muitos, já que poderia ferir de bala até mesmo um ente seu. Ninguém atira no rumo de pessoas sem alguma vontade. Isso nos leva a entender que houve intento de objetivar um crime, já que, ainda, o réu assumiu o risco de matar ao desferir tiros contra os indígenas, o que configura em dolo, e não a culpa.

Mas o que é o dolo e como ele pode ser configurado, doutor?

Dolo é “a vontade e consciência dirigidas a realizar a conduta prevista no tipo penal incriminador” (GRECO, 2006, p. 193). O Código Penal, por sua vez, traz a definição de crime doloso como sendo: “Art. 18 – Diz o crime: I – doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo”.

Portanto, dolo é, para o Direito Penal, a vontade do agente em querer cometer um ato vedado pelo ordenamento jurídico pátrio, objetivando a ofensa a um bem jurídico penalmente tutelado ou, na ausência do querer, o assumir o risco de produzir a referida ofensa. 

Aldeia Pindo Roky. Foto: Arquivo Cimi

Portanto, diante da análise da situação jurídica posta, resta mais que claro que o réu assumiu o risco de matar e por esse motivo descaracterizar um crime doloso para culposo, diante dos fatos narrados e provados nos autos do processo nº 000521-85.2013.8.12.0031, contribui com a impunidade no campo e coloca a vida do jovem indígena na condição de inópia, de coisificação, o que não se pode admitir.

Dostoiévski, no seu célebre “Memórias do Subsolo” (fls. 31), nos dá a condição de traduzir, nas suas palavras, algo quase não dito sobre o judiciário: “Em suma, pode-se dizer tudo da história universal, tudo que puder vir à cabeça da imaginação mais perturbada. Só não dá pra dizer uma coisa: que é sensata. Os senhores vão se engasgar na primeira palavra”.

Nos engasgam as palavras retiradas da sentença que se desmancha em desumanidades, na coisificação do ser humano e na vantagem do que não é sensato: ferir o outro ao ponto de tirar-lhe a vida, sem que haja uma razão sequer – mas sim, havia razão: a propriedade privada, embora esbulhada aos índios em passado não muito distante. Ao recuperar a nota do Cimi, compreende-se a estratégia de defesa do ruralista. “O Cimi compreende que a defesa feita pelos advogados do fazendeiro tem o objetivo de despolitizar o conflito, tratando a morte de Denilson como uma “fatalidade”, um crime comum, tirando-o da dimensão de crime contra os direitos humanos”. O tempo passou e o fato se consumou.

Resta-nos mais de Dostoiévski, agora para adaptar ao enredo macabro do assassinato do indígena e a narrativa de sua própria história de nenhum diante do “Estado Nacional do Brasil”: “Outra circunstância ainda me atormentava [era eu muito jovem]: justamente que ninguém parecia comigo [um gentio destas terras livres], e eu não me parecia com ninguém [e fui aprisionado até a morte]. “Sou sozinho e eles são todos”, pensava, e caía em melancolia. Só isso deixa evidente que eu ainda era bem criança (fls. 44).”

Fim!

[1] Vide em: https://www.correiodoestado.com.br/cidades/justica-entende-que-fazendeiro-nao-teve-intencao-de-matar-indigena/325898/. Acessado em 16/04/2018.

[2] Retirado de: https://www.cptnacional.org.br/publicacoes-2/destaque/4319-assassinatos-no-campo-batem-novo-recorde-e-atingem-maior-numero-desde-2003. Acesso em 16/04/2018.

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