27/04/2018

Indígenas reafirmam luta pela revogação do Parecer do Genocídio e governo se compromete a retomar reuniões do CNPI

Em nova reunião com lideranças, AGU e órgãos do governo se comprometeram a responder questionamentos e reativar Conselho Nacional de Política Indigenista

Segunda reunião de indígenas na AGU teve participação de representantes da Funai, ministério da Justiça, Casa Civil e MPF. Foto: Mídia Índia

Segunda reunião de indígenas na AGU teve participação de representantes da Funai, ministério da Justiça, Casa Civil e MPF. Foto: Priscila Tapajoara/Mídia Índia

No dia seguinte à manifestação de mais de três mil indígenas em frente à Advocacia-Geral da União (AGU), lideranças indígenas tiveram uma nova reunião com a ministra Grace Mendonça. Durante seis horas da tarde de quinta (26), representantes do Ministério Público Federal (MPF) e advogados reforçaram os argumentos jurídicos que demonstram a inconstitucionalidade do Parecer 001/2017, chamado pelos povos indígenas de “Parecer do Genocídio”, e lideranças reafirmaram o pedido por sua revogação imediata.

A segunda reunião com a Advogada-Geral da União foi obtida pelas lideranças indígenas no tenso encontro que ocorreu no dia anterior. Participaram também representantes do Ministério da Justiça (MJ), da Casa Civil e da Fundação Nacional do Índio (Funai), e uma série de compromissos foram firmados pelos órgãos e registrados em um documento. Os indígenas afirmam que a luta continua até o parecer cair.

“Enquanto eles estão fazendo esse diálogo interno, nosso povo está morrendo por conta desse parecer”, afirma Dorinha Pankará, uma das lideranças que participaram da reunião. “A ministra segue dizendo que o parecer não afeta as terras indígenas, só que os advogados e o MPF mostraram provas concretas em contrário”.

Grande contingente policial acompanhou a reunião do lado de dentro e de fora da AGU. Foto: Mídia Índia

Grande contingente policial acompanhou a reunião do lado de dentro e de fora da AGU. Foto: Priscila Tapajoara/Mídia Índia

Apenas cinco lideranças foram autorizadas a participar da reunião na AGU. Apesar do pequeno número de indígenas e do fato de a reunião já estar marcada, o prédio e os corredores do órgão foram tomados por um grande contingente policial. Celulares de advogados e de indígenas foram recolhidos pela segurança no início da reunião e a presença de repórteres foi vetada, o que causou nos indígenas a sensação de desrespeito.

“Chegamos e já foram recolhendo os nossos celulares. Abriram a minha bolsa, tivemos que tirar tudo, até os maracás. Nos sentimos muito constrangidos”, relatou Dorinha Pankará.

“Não gostei de chegar e ter toda a força policial lá dentro, retirando nossos celulares e nos intimidando. Achei que foi muito desrespeitoso com as lideranças”, avaliou Kretã Kaingang.

“A AGU disse que não poderia revogar o parecer porque ele foi assinado pelo presidente Michel Temer. Só que nós não fomos consultados sobre esse parecer, e sabemos que ele é bem desfavorável a nós”

Compromissos firmados

A segunda reunião com a AGU foi exigida pelos indígenas quando, em seu primeiro encontro, a ministra Grace Mendonça disse que “não tem autonomia” para revogar o parecer.

“A AGU disse que não poderia revogar o parecer porque ele foi assinado pelo presidente Michel Temer, e que só ele teria competência para fazer isso. Só que nós não fomos consultados sobre esse parecer, e sabemos que ele é bem desfavorável a nós”, explicou a liderança Kaingang.

“Fizemos muito forte a cobrança de que o Conselho Nacional de Política Indigenista CNPI tem que ser reativado, inclusive para respeitar a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Esse parecer está nos afetando diretamente e nunca fomos consultados”, afirmou Kaninari Apurinã.

A reativação do CNPI foi um dos pontos acordados na reunião. Dentro de 15 dias, o MJ e a Funai comprometeram-se a marcar com a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) a primeira reunião do Conselho desde que Michel Temer assumiu a presidência.

Além disso, também ficou acertada a criação de um grupo de trabalho da própria AGU, com possibilidade de participação do MPF e dos advogados dos povos indígenas, para discutir internamente o Parecer Antidemarcação.

No ano passado, o MJ anulou a portaria declaratória da Terra Indígena (TI) Jaraguá, em São Paulo, transformando-a na menor terra do Brasil. O Parecer 001/2017 foi e uma das bases da anulação, que ocorreu logo após sua publicação.

“A advogada-geral da União e o ministro da Justiça interino também se comprometeram a deflagrar um procedimento para a revisão da portaria que anulou a demarcação do Jaraguá”, explicou Luiz Eloy Terena, assessor jurídico da APIB.

Além da TI Jaraguá, a AGU também se comprometeu a dar respostas a respeito de outras sete terras indígenas que teriam tido seus procedimentos demarcatórios retrocedidos por causa do parecer.

Outro compromisso firmado foi de que os órgãos presentes buscarão viabilizar uma melhor estrutura para a Funai e reforçar as equipes da Procuradoria da Funai e da Consultoria Jurídica do MJ.

A ministra Grace Mendonça afirmou que não tem autonomia para revogar o parecer antidemarcação da AGU porque ele foi assinado pelo presidente Michel Temer. Foto: Mídia Índia

A ministra Grace Mendonça afirmou que não tem autonomia para revogar o parecer antidemarcação da AGU porque ele foi assinado pelo presidente Michel Temer. Foto: Priscila Tapajoara/Mídia Índia

Parecer inconstitucional

O Parecer 001/2017 força toda a administração pública a seguir as condicionantes definidas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no caso Raposa Serra do Sol a todos os procedimentos envolvendo terras indígenas – o que contraria a determinação da própria corte e, na prática, inviabiliza as demarcações.

Mais uma vez, a ministra tentou convencer os indígenas que o marco temporal – tese segundo a qual os indígenas somente teriam direito à demarcação das terras que estavam sob sua posse em 5 de outubro de 1988 – não faz parte do parecer.

“O Parecer da AGU é um corpo estranho ao direito indígena e já foi suplantado por decisões do STF. As decisões citadas no parecer contrariam a jurisprudência da Suprema Corte”

“Isso não é verdade”, explica Adelar Cupsinski, advogado do Conselho Indigenista Missionário (Cimi). “O marco temporal é um fundamento do parecer, porque ele é central nas decisões citadas pela AGU como referências a serem seguidas por toda a administração pública”.

Além do caso Raposa Serra do Sol, explica ele, outras três decisões do STF embasam o parecer, todas desfavoráveis aos povos indígenas – e todas ainda sendo questionadas com recursos ou ação rescisória, pois contêm fragilidades muito sérias.

Elas foram tomadas pela Segunda Turma do STF, da qual faz parte o ministro Gilmar Mendes, e serviram para anular a demarcação das TIs Guyraroka, Porquinhos e Limão Verde – em todos os casos, com base no marco temporal.

“O Parecer da AGU é um corpo estranho ao direito indígena e já foi suplantado por decisões do STF”, afirma Cupsinski. “Nós apresentamos uma petição com cerca de 25 decisões que afastam o marco temporal e as condicionantes do caso Raposa, a maioria delas do STF, mas também do STJ e dos tribunais regionais. As decisões citadas no parecer são muito específicas e contrariam a jurisprudência da Suprema Corte”.

O MPF já emitiu nota técnica, em que afirma que o Parecer 001/2017 é inconstitucional e deve ser anulado. Outro dos compromissos firmados pela AGU na reunião foi o de responder ao Ministério Público e às petições de questionamento apresentadas ao órgão.

Ausência de consulta a indígenas na elaboração do Parecer 001/2017 da AGU também foi questionada na reunião com a AGU. Foto: Mídia Índia

Ausência de consulta a indígenas na elaboração do Parecer 001/2017 da AGU também foi questionada na reunião com a AGU. Foto: Priscila Tapajoara/Mídia Índia

Sem revogação, luta continua

A exigência que levou milhares de indígenas a marchar até a AGU foi clara e direta: revogação imediata do Parecer do Genocídio, que tem inviabilizado demarcações e gerado insegurança para os povos indígenas.

“A ministra tentou dizer que o parecer é para agilizar as demarcações, mas para nós é um parecer da morte. Só quem comemorou ele é quem deseja nos roubar os nossos territórios”

“A violência e as ações judiciais em favor dos ruralistas aumentaram em função desse parecer, e deixamos isso bem claro na reunião, assim como a questão dele ser utilizado para a anulação de demarcações”, afirmou Karaí Popygua, liderança Guarani Mbya da TI Jaraguá que participou das duas reuniões da AGU.

“A ministra tentou dizer que o parecer é para agilizar as demarcações, mas para nós é um parecer da morte. Só quem comemorou ele é quem deseja nos roubar os nossos territórios”, explicou.

“Vamos aguardar para ver o que vai sair desses encaminhamentos, mas a gente sabe que a luta vai continuar”, resumiu Kretã Kaingang.

“Nós vamos continuar a nossa luta pela revogação do parecer”, conclui Karaí Popygua. “Não vamos mais aceitar novas mortes em função dele e vamos mobilizar os povos indígenas do Brasil inteiro nessa luta”.

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